terça-feira, fevereiro 27, 2007

a contragosto

Vou tentar explicar. Uma crise de choro - coisa de cinco minutos - é capaz de apagar de sua memória todas as trepadas e abortos cometidos no dia anterior, bem como é capaz de despertá-la para uma improvável "porção de calabreza, garçom, e dois chopes", assim de supetão, como se tomar a pílula do dia seguinte correspondesse a outra rodada estupidamente gelada... e à ressaca do outro dia: evidentemente morto na véspera, triste e cheio de charme num Rio de Janeiro que não mais existe. Sob esse aspecto, tenho que admitir, Joana é imbatível, linda e divertidíssima. Ela sabe desvencilhar dos outros e do próprio sexo como se fossem porções de queijo à milanesa, coraçõezinhos acebolados, penduras de boteco. O problema é que Joana é obrigada a consumir e repetir o pedido (ou suicidar-se, tanto faz) várias vezes... e nesse diapasão não pode contar consigo, nem com o garçom gente boa e muito menos com a mãe - que se matou (ou vingou-se de si mesma... vá lá) uma única vez. (...)
Daí que Joana não é apenas uma colecionadora de machos e fêmeas. Essa categoria pressupõe a sobreposição de carne sobre carne abatida e, por extensão, uma açougueira competente para dispor uma alma sobre a outra, ou seja, para "organizar o charque". Aí é que Joana se fode outra vez. Ela se inclui no charque, portanto coleciona a si mesma. Isto é, na base do desapego amoroso, Joana se entrega despudoradamente ao inimigo (ou amante da ocasião, tanto faz) o que sobrou da sua humanidade junto aos seus truques de fêmea interesseira: uma mistura improvável e incendiária na qual eu caí e cairia em qualquer tempo e lugar, feito um pato enfeitiçado. Amo essa mulher.

(Joana a contragosto - Marcelo Mirisola)

quarta-feira, fevereiro 21, 2007

Costuras

No fundo de um quarto
decorado apenas com noite
uma poltrona e um gemido
contra o vitrô

O homem deixa cair o copo, e antes que toque o piso e se expanda, sai dele uma mulher despejada como líquido de cores. Seu vestido e seu cabelo salpicam lentos o trajaeto da queda. É minha mulher caracol. Bela mas no final, se sente o roçar de uma mão nova se estira como sirena e arqueia o dorso. Morna, sua língua desenha rastros que tempos depois, quando te deixe, serão ácidos. Teus dedos poderiam puxar o cabelo e tua boca beijar seus lábios (todos os lábios unem). Mas quando não puder conter mais o grito, seu corpo de cores retornará a suas curvas e suas voltas. Se enroscará em um prazer último e te esquecerá em um sonho profundo.
( De Maria Eugenia Lopez, tradução de Virna Teixeira)

domingo, fevereiro 04, 2007

mais um, mais um!

"Adoro camas que não são camas e ele tem uma dessas. Minha vontade é deitar ali e fazer alguma graça, minha vontade é que ele tire meus sapatinhos de boneca com calma e beije meus pés, afinal: pintei minhas unhas de vermelho só para ele. Minha vontade é que ele me pergunte se quero um pouco de chá gelado e se eu gostaria de ver um dos seus filmes estirada nas grandes almofadas. Mas ele não quer saber dos meus pés, dos meus olhos deslumbrados com aquela vida de cinema, do meu dente sujo de chocolate ou da minha garganta que arde. Ele quer mergulhar em mim, ele quer entrar em mim, ele quer me descobrir a fundo. Mas ele quer tudo isso sem sequer tocar em mim.
Eu mais uma vez me pergunto como é mesmo que se faz a coisa mais profunda do mundo com total superficialidade. Como é que se ama sem amor? Como é que se entrega de dentro de uma prisão? Nunca soube.
Tenho vontade de perguntar baixinho: você não gosta nem um pouquinho de mim? Nem sequer um tiquinho? Olha só: eu tenho os dedinhos do pé bem estranhos. Eles não são absurdamente merecedores de amor? Mas ele não quer perder tempo com dedinhos de pé, pintinhas brancas ou antebraços molinhos. Ele quer morar em mim mas está cagando para todas as belezas da casa."
(Trecho emprestado da Tati Bernardi, mais uma vez)